September 2006: 10° Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa – Celso Junior
Arno Gruen, ao dissertar sobre conformistas (que sabem exactamente como se devem comportar perante as normas da sociedade), afirma que: “a doença fundamental da Humanidade gira em torno daqueles que só conseguem manter de pé as estruturas da sua personalidade recorrendo a imagens do inimigo e que encobrem o ódio que têm a si próprios, a sua insegurança e a sua irresponsabilidade em relação à própria existência”.
Em finais de 1996, minutos após lhe ter sido apresentado, fui abruptamente convidado por Gonçalo Diniz para criar e organizar o Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa, o qual à partida contava com o apoio institucional da Câmara Municipal de Lisboa e o empenho pessoal de seu Presidente, o Senhor Dr. João Soares.
Considero-me um privilegiado. A vida deu-me sempre a oportunidade de expandir os meus limites, pelo que ainda que tenha ficado surpreendido com o convite e assustado com a dimensão do desafio, resolvi aceitá-lo.
Dez anos volvidos do Primeiro Festival, os quais coincidiram com dez anos intensos da minha vida, também a nível pessoal, é natural que se proceda a um balanço. Balanço esse donde constam: vitórias e derrotas, alguns ganhos, muitas perdas e a sensação, um tanto amarga, ao, quando confrontado com a realidade de hoje em dia, se percebe que nestes últimos dez anos, pouco mudou em termos de comportamento, civilidade e cidadania e o quanto, em Portugal, estamos longe de uma transformação / evolução ao nível das mentalidades.
Uma das facetas no Ser Humano que mais me incomoda é a sua falta de lucidez perante o mundo que o rodeia. Insistimos na obediência cega a normas impostas, sem espírito crítico. Obedecemos a normas por preguiça, por inércia, por preconceito, por medo e temor, ou, ainda, por superstição. Não por concordância e muito menos por compreensão. A sexualidade, a nossa sexualidade, insiste em ficar resguardada por um véu (nada diáfano) bordado de tabus, de medos e de um milhão de coisinhas complicadas que ali colocamos como que para estancar o nosso processo de evolução em direcção ao divino que há em nós. Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgenders e Heterossexuais, todos os que fazem parte deste universo, desta realidade, são oprimidos e, simultaneamente, opressores, em nome de um inimigo invisível que no fundo só está em nós. Assim, por puro abuso e com plena consciência do que fazem, Igrejas, Governos e outras opacas entidades tentam, como sempre o fizeram, controlar nossa sexualidade, pois controlando-a, julgam que preservam o nosso “modo de vida”, impedem o chamado “regresso à barbárie do Mundo Pré-Cristão” e controlam-nos a todos.
Ao assumir nossa orientação, seja ela qual for, iniciamos a construção do nosso Eu Verdadeiro, e isto assusta, porque temos a tendência de viver em função do Outro e não para o Outro, para nos darmos e sermos melhores é necessário que, no mínimo, tenhamos auto-conhecimento e que nos aceitemos. Confesso que faço o apanágio do Individualismo (não confundir com Egoísmo), pois creio ser através deste que se pode criar um mundo melhor.
Dez anos passados e tenho uma sensação incómoda na alma. Quase parece que muito pouco foi feito, o que apesar de não ser verdade, demonstra o quão longe ainda estamos de cumprir o objectivo maior deste Festival, que sempre passou por uma tónica na Educação e na Cidadania, com a promoção de uma sociedade melhor, mais Justa e mais Livre, onde a Gisberta não só sobrevivesse, mas vivesse. Sinto-me, por vezes, como um D. Quixote a lutar contra os moinhos criados em nome da intolerância e da ignorância vigentes.
Este Festival tem percorrido um caminho dificílimo e infelizmente ainda é muito pouco acarinhado pelas Instituições oficiais do país e da cidade. A própria “comunidade glbt”, retrato em miniatura, mas fiel à realidade deste país, também porque não há minorias intrinsecamente boas, deixa muito a desejar, é indolente, conformista e pouco reivindicativa.
Assim, ao comemorar os dez anos deste Festival, a HOMOFOBIA é o tema de eleição, um tema manchado de dor, de sangue, de mal-estar e de vergonha e, exactamente por isso, pertinente.
Um tema recorrente, uma frase de Brecht que não me sai da cabeça, “...o terreno ainda está fértil”, e eu me pergunto, como, ainda e porquê?
Como pode um país (lê-se também comunidade glbt) que teve seu coming out de uma maneira vibrante e original, deixar-se levar pela inércia da estupidez? Pequenos acontecimentos isolados, uma injúria aqui, uma provocação ali, sintomas claros que o que tinha de germinar já criou raízes e cresceu. Como aceitar o que se passou em Viseu, a série de manifestações de extrema direita aprovadas pelo Governo Civil, a atenção dos media às mesmas, o comportamento em geral dos media em relação ao tema glbt, o Arraial Pride ter sido posto fora do centro da cidade (felizmente voltou a se realizar no coração de Lisboa de onde nunca deveria ter saído), a chantagem da ex-vereadora da Cultura em mudar o nome deste Festival, suprimindo as palavras gay e lésbico de seu título, a tortura e assassinato de Gisberta no Porto e rumo que este caso tomou na Justiça, a atitude do Consulado português em Madrid em relação aos casamentos homossexuais, as perseguições silenciosas, as inimagináveis situações de preconceitos vivenciados dia a dia e o MEDO, um medo que quase se faz concreto e que faz uma comunidade “voltar para o armário” e lá pretender ficar. Para mim, no entanto o pior de tudo foi que em nenhum momento, as Presidências da República (anterior e actual), nem os Governos de então sentiram a menor necessidade e vontade de enviar uma mensagem aos cidadãos deste país, quer para lamentar, quer, ainda, para recusar qualquer cumplicidade em relação a estes factos.
Apesar de tudo o movimento glbt aí está, de pé, como também este Festival e hoje a sociedade portuguesa (mesmo que tente) não escapa à política da orientação sexual. Quero acreditar na nova geração glbt, a qual algumas vezes me surpreende pela positiva com alguns valores que surgem, mas tudo é relativo e proporcional ao tamanho do país, quero dizer com isto, que ainda serão necessários muitos anos e muito trabalho. Quero acreditar que um dia o que eu sonhei e o amor que dediquei a este Festival e a esta cidade dê algum fruto, que vidas sejam respeitadas e poupadas, que o sofrimento seja atenuado, que qualquer pessoa seja vista como ser humano e cidadão independentemente da orientação sexual.
Quero ser optimista e acreditar que as lacunas que persistem no sistema possam ser preenchidas correctamente, que surgirão líderes audazes, que o acaso e sorte farão emergir o bom senso e a Justiça. No que me diz respeito, apesar de ser muito difícil lutar e contra-argumentar com a estupidez humana, não tenho a menor intenção de desistir. Conheço bem o meu papel e a minha missão neste planeta e se foi semeado ódio neste terreno fértil, também eu semeei e aqui está, com frutos, umas das minhas árvores preferidas. Recuso-me a desistir, a ter vergonha do que sou e sobretudo a morrer como minoria.
Lisboa, minha querida Lisboa, eu não nasci aqui e nem aqui me criei, mas deixo para ti muito mais que deixei no meu próprio país, fiz a minha parte, agora é contigo. Abra os olhos Lisboa...
O caso Gisberta trouxe à luz, de forma chocante, toda a Homofobia e Transfobia, presente em nossa sociedade, os seus contornos são claros e visíveis a quem os queiram ver, não obstante, uma recusa e aquela falta de lucidez a que me referi anteriormente insiste em vigorar. O silêncio reina, a indiferença e a ignorância são soberanas. O que nos resta para além da indignação? Resta-nos lembrar. Estamos todos proibidos de esquecer o que se passou. Assim sendo, quero dedicar os dez anos de trabalho neste Festival não à Gisberta mas aos seus assassinos, assassinos sem nomes (porque eu não sei os seus nomes), obscuros e marginais como foi a vida dela, pequenos heróis que, por matarem o dragão, contam com a silenciosa cumplicidade e implícita compreensão da nossa sociedade.
Fundador do FCGLL e Programador
Em finais de 1996, minutos após lhe ter sido apresentado, fui abruptamente convidado por Gonçalo Diniz para criar e organizar o Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa, o qual à partida contava com o apoio institucional da Câmara Municipal de Lisboa e o empenho pessoal de seu Presidente, o Senhor Dr. João Soares.
Considero-me um privilegiado. A vida deu-me sempre a oportunidade de expandir os meus limites, pelo que ainda que tenha ficado surpreendido com o convite e assustado com a dimensão do desafio, resolvi aceitá-lo.
Dez anos volvidos do Primeiro Festival, os quais coincidiram com dez anos intensos da minha vida, também a nível pessoal, é natural que se proceda a um balanço. Balanço esse donde constam: vitórias e derrotas, alguns ganhos, muitas perdas e a sensação, um tanto amarga, ao, quando confrontado com a realidade de hoje em dia, se percebe que nestes últimos dez anos, pouco mudou em termos de comportamento, civilidade e cidadania e o quanto, em Portugal, estamos longe de uma transformação / evolução ao nível das mentalidades.
Uma das facetas no Ser Humano que mais me incomoda é a sua falta de lucidez perante o mundo que o rodeia. Insistimos na obediência cega a normas impostas, sem espírito crítico. Obedecemos a normas por preguiça, por inércia, por preconceito, por medo e temor, ou, ainda, por superstição. Não por concordância e muito menos por compreensão. A sexualidade, a nossa sexualidade, insiste em ficar resguardada por um véu (nada diáfano) bordado de tabus, de medos e de um milhão de coisinhas complicadas que ali colocamos como que para estancar o nosso processo de evolução em direcção ao divino que há em nós. Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgenders e Heterossexuais, todos os que fazem parte deste universo, desta realidade, são oprimidos e, simultaneamente, opressores, em nome de um inimigo invisível que no fundo só está em nós. Assim, por puro abuso e com plena consciência do que fazem, Igrejas, Governos e outras opacas entidades tentam, como sempre o fizeram, controlar nossa sexualidade, pois controlando-a, julgam que preservam o nosso “modo de vida”, impedem o chamado “regresso à barbárie do Mundo Pré-Cristão” e controlam-nos a todos.
Ao assumir nossa orientação, seja ela qual for, iniciamos a construção do nosso Eu Verdadeiro, e isto assusta, porque temos a tendência de viver em função do Outro e não para o Outro, para nos darmos e sermos melhores é necessário que, no mínimo, tenhamos auto-conhecimento e que nos aceitemos. Confesso que faço o apanágio do Individualismo (não confundir com Egoísmo), pois creio ser através deste que se pode criar um mundo melhor.
Dez anos passados e tenho uma sensação incómoda na alma. Quase parece que muito pouco foi feito, o que apesar de não ser verdade, demonstra o quão longe ainda estamos de cumprir o objectivo maior deste Festival, que sempre passou por uma tónica na Educação e na Cidadania, com a promoção de uma sociedade melhor, mais Justa e mais Livre, onde a Gisberta não só sobrevivesse, mas vivesse. Sinto-me, por vezes, como um D. Quixote a lutar contra os moinhos criados em nome da intolerância e da ignorância vigentes.
Este Festival tem percorrido um caminho dificílimo e infelizmente ainda é muito pouco acarinhado pelas Instituições oficiais do país e da cidade. A própria “comunidade glbt”, retrato em miniatura, mas fiel à realidade deste país, também porque não há minorias intrinsecamente boas, deixa muito a desejar, é indolente, conformista e pouco reivindicativa.
Assim, ao comemorar os dez anos deste Festival, a HOMOFOBIA é o tema de eleição, um tema manchado de dor, de sangue, de mal-estar e de vergonha e, exactamente por isso, pertinente.
Um tema recorrente, uma frase de Brecht que não me sai da cabeça, “...o terreno ainda está fértil”, e eu me pergunto, como, ainda e porquê?
Como pode um país (lê-se também comunidade glbt) que teve seu coming out de uma maneira vibrante e original, deixar-se levar pela inércia da estupidez? Pequenos acontecimentos isolados, uma injúria aqui, uma provocação ali, sintomas claros que o que tinha de germinar já criou raízes e cresceu. Como aceitar o que se passou em Viseu, a série de manifestações de extrema direita aprovadas pelo Governo Civil, a atenção dos media às mesmas, o comportamento em geral dos media em relação ao tema glbt, o Arraial Pride ter sido posto fora do centro da cidade (felizmente voltou a se realizar no coração de Lisboa de onde nunca deveria ter saído), a chantagem da ex-vereadora da Cultura em mudar o nome deste Festival, suprimindo as palavras gay e lésbico de seu título, a tortura e assassinato de Gisberta no Porto e rumo que este caso tomou na Justiça, a atitude do Consulado português em Madrid em relação aos casamentos homossexuais, as perseguições silenciosas, as inimagináveis situações de preconceitos vivenciados dia a dia e o MEDO, um medo que quase se faz concreto e que faz uma comunidade “voltar para o armário” e lá pretender ficar. Para mim, no entanto o pior de tudo foi que em nenhum momento, as Presidências da República (anterior e actual), nem os Governos de então sentiram a menor necessidade e vontade de enviar uma mensagem aos cidadãos deste país, quer para lamentar, quer, ainda, para recusar qualquer cumplicidade em relação a estes factos.
Apesar de tudo o movimento glbt aí está, de pé, como também este Festival e hoje a sociedade portuguesa (mesmo que tente) não escapa à política da orientação sexual. Quero acreditar na nova geração glbt, a qual algumas vezes me surpreende pela positiva com alguns valores que surgem, mas tudo é relativo e proporcional ao tamanho do país, quero dizer com isto, que ainda serão necessários muitos anos e muito trabalho. Quero acreditar que um dia o que eu sonhei e o amor que dediquei a este Festival e a esta cidade dê algum fruto, que vidas sejam respeitadas e poupadas, que o sofrimento seja atenuado, que qualquer pessoa seja vista como ser humano e cidadão independentemente da orientação sexual.
Quero ser optimista e acreditar que as lacunas que persistem no sistema possam ser preenchidas correctamente, que surgirão líderes audazes, que o acaso e sorte farão emergir o bom senso e a Justiça. No que me diz respeito, apesar de ser muito difícil lutar e contra-argumentar com a estupidez humana, não tenho a menor intenção de desistir. Conheço bem o meu papel e a minha missão neste planeta e se foi semeado ódio neste terreno fértil, também eu semeei e aqui está, com frutos, umas das minhas árvores preferidas. Recuso-me a desistir, a ter vergonha do que sou e sobretudo a morrer como minoria.
Lisboa, minha querida Lisboa, eu não nasci aqui e nem aqui me criei, mas deixo para ti muito mais que deixei no meu próprio país, fiz a minha parte, agora é contigo. Abra os olhos Lisboa...
O caso Gisberta trouxe à luz, de forma chocante, toda a Homofobia e Transfobia, presente em nossa sociedade, os seus contornos são claros e visíveis a quem os queiram ver, não obstante, uma recusa e aquela falta de lucidez a que me referi anteriormente insiste em vigorar. O silêncio reina, a indiferença e a ignorância são soberanas. O que nos resta para além da indignação? Resta-nos lembrar. Estamos todos proibidos de esquecer o que se passou. Assim sendo, quero dedicar os dez anos de trabalho neste Festival não à Gisberta mas aos seus assassinos, assassinos sem nomes (porque eu não sei os seus nomes), obscuros e marginais como foi a vida dela, pequenos heróis que, por matarem o dragão, contam com a silenciosa cumplicidade e implícita compreensão da nossa sociedade.
Fundador do FCGLL e Programador
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