Thursday, August 18, 2005

EXHIBITIONS: SANTOS DA CASA Galeria Labiryntho - Oporto 1990


A ARTE MALDITA DE CELSO JUNIOR
por J.F. Tavares

Toda a maldição pressupõe uma crença.
A par dessa crença, existe o estigma; uma inquietante presença que tem acompanhado uma escola à qual os compêndios não ousam referir-se, quer por falta de dados a respeito, quer por não a considerarem digna de atenção objectiva, quer, ainda, por “temerem” tratar uma matéria para a qual não possuem as chaves necessárias para entrar.
Em todas as épocas existe a criação de um Templo que mais não é do que a eterna recriação do Apocalipse — sala fechada, intransponível apenas se olha de fora, pela janela gradeada. Como tal, a revelação é apenas concedida aos eleitos, essa escola esotérica que é preciso merecer pelo sangue. Eles foram, outrora, os alquimistas, os assopradores da chama divina da vida, os obreiros da Pedra Filosofal que conheceram o tempo, controlaram os astros do devir do destino humano, atravessaram, até, as fronteiras da sua humanidade; isto é, tornaram-se malditos. Ser maldito entre os malditos, é isso mesmo ultrapassar as fronteiras da sua humanidade. Falar, pois, de malditismo é tarefa não muito gratificante: entrar no domínio do obscuro e do indeterminado.

A arte de Celso Júnior possui essas qualidades — constitui um transgredir perpétuo. Poderíamos tentar dar uma definição aproximada do malditismo deste pintor, atendendo ao essencial do seu percurso. Aquilo a que poderemos designar a circunstância maldita em Celso Júnior, tem a ver com o pulsar auto-destrutivo em nome de um prazer estético. Essa singular e latente auto-destruição é o resultado de um continuum perpetuamente transgressor. Atendendo ao facto de que, em arte, não existem fases isoladas, ser-nos-á, contudo, permitido delinear um conspecto generalizante deste percurso criador.

“A minha obra é o meu retrato” Toda a obra de arte não é mais do que o retrato do artista que a concebeu. Isso acontece quer com as personagens de um romance, uniformes na sua heterogeneidade, quer com a arte “kitsch” de Celso Júnior. O conhecimento da Natureza, apanágio da totalidade do ilimitado poder criador, está subjacente a uma técnica. A técnica do conhecimento é o produto de uma experiência variada, ora vivida ora adquirida, onde o sensorial e o racional desfilam num mesmo rio de perpétuos afluentes, pois nenhuma rota está imune à circunstância do incidente.
Retrato do artista, pois: aqui reside a sua riqueza e a sua fraqueza. O autobiográfico, quando deliberado, constitui uma séria ameaça à perenidade (ou, tão somente, permanência) de uma obra. A vida de um artista é tão cheia de contingências como qualquer outra. Quando auto biográfica, isto é, quando submetida aos estreitos limites de um universo pessoal, o efeito estético dilui-se, perdendo-se na cronologia do historicismo e apaga-se definitivamente de uma memória essencial.
Apesar do intenso pendor autobiográfico, (diríamos melhor, auto-sensorial) a arte de Celso Júnior tem tudo para se salvar. Subjacente à sua criação estética, existe esse timbre onde o maldito dá corpo a uma policromia que pode ser entendida como provocatória.
Os quadros de Celso Júnior estão cheios de luz, pois há neles um resplendor que lhes dá a tonalidade certa. o resplendor da sua arte iconográfica, a parte do leão (ou a parte maldita, como diria Bataille), composta por uma colecção de santos de transgressor êxtase místico.

Olhar o céu na procura de uma divindade que se adivinha, é o mesmo que obedecer a um ritual antigo. Deus está no alto, o espírito encoberto que só o poder dos eleitos transformados em anjos poderá fazer contemplar. Aqui que entra esse timbre “kitsch”, tão notório e intencional na arte de Celso Júnior: esse olhar baço e submisso tão comum na arte iconográfica, esse esgar de dor provocado pela seta cravada no peito, revelam algo mais do que êxtase: revelam a própria transgressão.

Os santos de Celso Júnior não foram concebidos para o misticismo nem servem de complemento a qualquer função religiosa, são apenas anjos malditos cruéis na sua beleza, que ocupam um lugar que jamais lhes poderiam pertencer. Cruéis porque o seu êxtase é falso; a sua ataraxia é de plástico; cruéis porque inacessíveis à posse. Os seus rostos idealizados e de que a arte “kitsch” se apoderou, traduzem a própria inacessibilidade dos seus corpos. Aqui, eles representam a própria progressão da libido, pois as qualidades neles implícitas são a lubricidade e a lascívia. A um primeiro olhar, estas qualidades são estranhas ao apreciador despercebido, pois a arte “kitsch” de Celso Júnior faz com que o próprio “kitsch” ultrapasse as suas possibilidades limitadas e possua uma linguagem própria. Uma vez mais, retornamos à ideia de transgressão ou malditismo.

Regresso às raízes culturais europeias

Noutra perspectiva, existe um profundo paralelismo entre a representação iconográfica destes santos e a permanência do pintor cm Portugal. Não se trata apenas de um regresso às origens culturais europeias (e Portugal tem um peso óbvio que, por norma, o brasileiro se teia recusado a entender); é também a procura de um objectivo para a vida; consequentemente, um objectivo para a arte. Esta permanência tem representado um regresso a um estado de privação entendido como necessário.

Regressão significa o começo de um percurso feito de novos conhecimentos. Significa começar do nada para que a raiz fortaleça e dê frutos, onde esteja implícita uma verdade que, de outro modo, seria inacessível; ou, pelo menos, estaria pejada de um artificialismo fatal.
Só a provação é fecunda — lição perene que todo o artista autêntico sabe, O que é menos fácil saber é reconhecer a autenticidade na arte. Este termo impressionista, rejeitado pelos novos arautos da Crítica, está a ser de novo usado; desta vez com a dimensão que lhe pertence. Poderá dizer-se, com alguma justeza, que a arte de Celso Junior é fiel a si mesma; isto é, está em sintonia com o impulso original do seu autor.

A arte como sublimação. Fantasia e Escatologia

A arte de Celso Júnior pode ser estudada a vários níveis. Para lá do nível dos santos, temos outros: as mulheres, os soldados, a mitologia e as variantes. Analisando, com algum detalhe, o pulsar essencial de cada nível enunciado, é-nos necessário começar pelo último. Tornemos, para tal, um exemplo paradigmático: o Nossa Senhora com o burro (1990). Este óleo é um dos mais representativos da estada de Celso Júnior em Portugal; fruto, pois, dessa provação fundamental que é necessário erigir em símbolo.
O efeito desta figura nao menos iconográfica do que os santos, chega a ser surpreendente. Esta Nossa Senhora (atributo, já de si, pleno de malditismo) está repleta de sarcasmo, O seu esgar provoca-nos dor, angústia, ironia, desprezo e algo a que se poderá chamar loucura. Esta”Nossa Senhora” desvairada está montada num burro de madeira; animalzinho propositadamente ridículo. A completar o cenário “kitsch”, temos a criança com vestido de folhos e motivos estampados; a criança é uma boneca de plástico de rosto estupidificado, sem vida, sem alma.
O que importa salientar neste quadro é a alma da “Nossa Senhora”; esse sarcasmo imenso ligado a um conjunto irónico e ridículo. Estamos, uma vez mais (mas, aqui, de forma absoluta) diante desse malditismo transgressor onde se encontram dois tópicos comuns na arte de Celso Júnior, a imagem de inspiração religiosa e a figura da mulher.
Esta associação, que decidimos compartimentar ao nível das variantes, tem tudo para se considerar a um nível elevado. Serve-nos esta consideração para abordarmos o tratamento que é dado, especificamente, à figura da mulher.
No homossexualismo latente revelado pela iconografia mística, qualquer crítico menos cauteloso (porque os há, apressados) poderá cair numa certa facilidade ao considerar a representação da mulher como um motivo meramente académico. Consideração que seria, ao que julgamos, errónea.
Na arte pictórica de Celso Júnior, a mulher só ilusoriamente é mulher de verdade. Esta possui, para o pintor, um significado simbólico; ela á um elemento simplesmente exótico. A beleza feminina, tópico essencial nesta série pictórica, surge com o (r)esplendor que lhe é devido. Uma vez mais nos surge essa policromia provocatória que deixa entrever algo mais do que uma mulher. Os modelos são reais, mas não á somente uma realidade imediata que é retratada — o retrato é apenas um motivo para apelar a uma aura; interessa ao pintor ler a alma do modelo e revelá-lo por inteiro na tela. O modelo sai sempre favorecido; na realidade, é o seu interior que estamos a ver a partir de uma realidade que nos à próxima e que é incomparavelmente mais bela.

A um nível diferente dos santos (e também dos retratos de mulher) temos os soldados. Entramos no campo da fantasia e da escatologia. Os retratos de soldados são o resultado de uma sublimação. Dentro deste nível, poderemos entrever também variantes, como é o caso deO LAVA-PÉS, também de 1990. Nesta variante (que está quase ao nível do Nossa Senhora com o Burro), podemos encontrar a representação de um Guarda Nacional Republicano (com capacete e botas) agachado, lavando os pés a um mancebo de tronco nu. O mancebo apoia a cabeça entre as mãos; um pé está dentro da bacia de barro pronto a receber a água que o GNR está prestes a lançar-lhe -de um jarro também de barro e com o mesmo padrão kitsch. Curioso verificar estas duas personagens-tipo do imaginário de Celso Júnior. Para lá do mancebo, cujos pés são tratados com extremo carinho, o GNR de bigode e óculos escuros é o paradigma do fetiche militar do pintor.

Há neste conjunto dois elementos que, ao nível do imaginário e do fetiche, se completam: são eles as botas do soldado e os pés nus do mancebo. Esta dualidade dicotómica conduz a uma circunstância marcadamente escatológica. Esta escatologia que podemos encontrar nos retratos dos soldados. Representação de um soldado nu, com botas, capacete e cartucheira a disparar a metralhadora, assim como a representação do soldado que acaba de ser atingido pela rajada, constituem uma outra unidade escatológica: o esgar do soldado que acaba de morrer é semelhante àquele provocado por um orgasmo.
Neste quadro, conjugam-se dois elementos que, apesar da alegoria, o autor sabe profundamente reais: o PODER e o SEXO.
Imaginário, poder, sexo, escatologia e maldiitismo: eis as características da arte de Celso Júnior. Falta-nos, para completar o nosso excurso, observar o nível mitológico da sua pintura.

a continuação do texto encontra-se no PROJECTO LILITH